quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Carta para a menina do espelho




Eu agradeço a criança que você foi, agradeço por ainda tão pequenina você ter alimentado a essência da sabedoria na mente infinita que carregou anelada a seu corpo frágil ! Agradeço ao seu jeito único de ver e enxergar as coisas todas, desde poeira na peça a poeira estelar. A sua óptica, a sua visão de mundo mesmo ainda em tão tenra infância e mesmo padecendo tanto de tantas doenças e dores, salvou os meus dias futuros de uma realidade sombria e aterradora presente na vida de quem se vê dependente de pessoas para sobreviver, da medicina para permanecer, do homem para não morrer. 

Seria horrível ter que conviver com isso em uma realidade fria e material apenas, onde a liquidez domina os dias e as trivialidades assolam as horas doridas com doses nada homeopáticas de morte a cada respirar quase impossível. Olho para trás e penso em você e tudo o que me vem é essa sensação de plenitude imensa residente na felicidade por ter sido você. Você foi o início de tudo, do amor próprio, da resiliência, da força e da delicadeza em doses certas e necessárias, você foi a foz do auto conhecimento, não apenas tornando isso possível como fazendo isso incrível. Você foi a guerra e a paz que precisei em todos os momentos que fraquejei. 

Nos piores instantes de dor e angústia, imersa na mais absoluta solidão, entre fios e furos, máquinas e tubos, morte e vida se engalfinhando em meio a corredores gelados e jalecos inóspitos, eu podia mergulhar em mim mesma e voltar ao fundo, lá, no comecinho, onde você conseguia destilar do universo os ensinamentos necessários a toda uma vida de dores externas e dos mais infidos prazeres internos. Isso que você fez foi incrível, como pode ainda tão jovem enxergar assim, o maior e mais especial de tudo? como conseguiu ainda tão criança ter essa noção exata de que o principal a ser observado e absolvido está na profundidade das coisas e não no raso, na superfície? Como pode aprender e apreender tanto, menina? (Lágrimas)

Lembro de uma frase que sempre repetiam, igual ou parecida, geralmente em momentos ímpares, onde você externalizava lições do que vinha dentro de alguma coisa qualquer:

- Cuidado com essa menina estranha e esquisita, ela é capaz de qualquer coisa, não subestimem essa magrela doente. 

E você escolhia acreditar na luz presente nas trevas e reter o melhor de tudo: 

“Eu sou capaz de qualquer coisa boa que me faça sobreviver, sim, eu sou capaz!”

Você colocou em minhas mãos verdadeiras soluções e antídotos às questões mais distintas, desde as mais complexas até as que se mostravam absolutamente impossíveis. Serenidade, esperança, otimismo, bom humor, foram apenas alguns dos segredos que por sua causa, hoje, eu tenho como relíquias sagradas de um trilhar que tudo pode, tudo vê, tudo crê e tudo ama infinitamente, com sabedoria e munida do elixir da verdade a desvendar os falsos e decifrar as coisas nenhumas travestidas de valor. 

Eu comecei a me amar, mesmo contrariando a óptica de todos e contrariando as regras sobre quem eu era, quando nasci você e mergulhei em quem sou, quando te encontrei no espelho e percebi o quão especial você era e o quanto eu seria grata a você por tudo, por todas as coisas que me permitiu e ainda permite apreciar, vislumbrar, admirar, sentir, possuir, entender. Todos esses universos ricos de coisas raras que você não escusou em conhecer e não me privou de desfrutar são peças chaves nas soluções dos enigmas que sou hoje, o decifrar de mim, em ti, que nos anela a quem somos, eu e esse amor que tenho por nós, que transcende e me faz ser a todos e um pouco mais. 

Gratidão, menina, você venceu e por isso eu sou!

Amo você !


Sunna França 

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