quarta-feira, 21 de abril de 2010

Carta ao pequeno príncipe


Em uma terra distante que não pertencia aos mapas, onde os sonhos há tempos já haviam acordado, existia uma pequena bailarina que havia sido trancada dentro de uma também pequena caixinha de musica. Sozinha ali dentro, a pequena bailarina criou o seu próprio universo, onde belas paisagens por ela outrora visitadas, de onde drasticamente fora arrancada, eram pintadas em telas, relembradas em livros e revistadas pelas janelas da alma. 
Paisagens essas que transformavam-se em cenário para muitas histórias que permeavam a sua mente criativa aliadas ao self-selvagem que sempre a pertenceu, solidificado em seu mais intimo recondito do ser por toda a magia que um dia vivenciou. Tinha como trilha sonora as canções esboçadas por um pulcro piano recolhidas dos sons da terra, sussurros dos tempo, chamados da natureza e seus rituais. Certa época, a bailarinazinha já cansada e desanimada de reinventar-se a si mesmo, resolveu começar a enviar, por uma pequena fresta da caixinha, cartas de desabafo a um pequeno ser que ela conheceu por meio das tão por ela amadas palavras, em cartas que num tempo remoto secretamente eram respondidas e misteriosamente rebatidas por ele, sendo ele, o pequeno príncipe.
Eis a carta:
Oi pequeno menino e grande sábio. Lembro-me da primeira vez em que te li, eu era uma menininha serelepe e livre com a idade contada nos dedos das duas mãos e confesso que teus escritos encantaram-me mais do que a primeira vez em que escutei a tua voz, pois nesse dia, com teu grito de dor, tu me assustou. Perdoe-me por esse dia, se grosseiramente me afastei...Era quase noite, caía fina garoa e sentia-me solitária e com medo... É, pequeno príncipe, eu estava com muito medo do escuro que insistia em permanecer à minha volta, mesmo com todas as luzes acesas. Já não tinha mais o mesmo brilho nos olhos, sentia-me desprovida de sons, afetos e amor. Recordo-me que embaixo da minha cama habitavam fantasmas assustadores, que insistiam em permanecer ali a me assombrarem com palavras vazias, efêmeras, pérfidas e nulas... Eu os nomeava um a um, mas não ousava chamá-los e mesmo assim, alguns deles continuavam ali.
O fantasma da solidão me entristecia o olhar e foi gerado pela união dos fantasmas do abandono e da covardia... Esses eram tipos de fantasmas que eu realmente temia, pois eram implacáveis, desprovidos de compaixão, solidariedade, senso de amizade e amor e nutriam em si outros fantasmas, como a falsidade, a mentira e o engano. O fantasma do racionalismo emudecia os meus dedos e não deixava-me mais expressar o meu verdadeiro eu, por pura maldade e falta de interesse no que eu realmente era. Foi a partir dele que tomou força e forma o fantasma da frieza... Nossa... Como os meus sentidos sentiam frio perto dele! Enquanto o fantasma da apatia deixava-me totalmente inerte, sem luz e sem cor.
O maior de todos os fantasmas não me conhecia nem um pouco, ou conhecia demais e temia o que eu realmente era, esse adotou-me quando por um triste e sombrio lapso de memoria, esqueci quem eu era... Não sei dar um nome a esse fantasma, sei que só pode ter nascido da sensação de posse e domínio do homem, e que por ele fui colocada dentro dessa pequena caixinha de musica e sob uma redomasinha eu dançava a cada vez que ele dava corda... É uma caixinha confortável, tem dentro um piano que ao longo do tempo, assustado, emudeceu-se. Tem também papel e caneta que logo cessaram o falar. Um dia fui presenteada com os teus escritos que surgiram como o raiar do sol através de uma pequena fresta que com muito esforço eu consegui abrir na memoria. Sim, menino encantado, eu conseguia ler tuas palavras escritas no véu do tempo, grafadas com letras de ouro flamejante e muitas vezes ouvi ou li o teu clamor: - Pequena e dourada bailarina, há tanto que te amo! Tu nem sonhava ainda em ser uma menina, apenas raio de sol parido a meia-noite...
Desde então nunca parei de sentir-te, ouvir-te e continuei a ler-te imaginando como seria habitar o teu planetinha, pois desse aqui tu não és, caístes do céu como estrela angelical enviada, escolhida mesmo sem saber, à realizar o desejo maior de prosseguir o viver do pequeno raio solar que viria após tua chegada triunfante à terra. O que não se sabia é se eu, que tanto te sentia, seria como a tua rosa, que tu tão zelosamente cultivavas e da qual tu achavas que eras dono, ou se eu seria como a raposa, que desejava por ti ser cativada e sendo, teve que ouvir de ti e dizer-te o adeus... Tive medo de não ser nem uma coisa nem outra, pois seria certo que carregasses o peso de cativar mais alguém sobre ti? E ainda mais uma simples bonequinha pálida e esmaecida feito eu? 
Foi então que percebi que o pequeno espaço que para mim existia em teu lugar, em teu ser, era uma janela em minha caixinha que a mim trazia noites ensolaradas e dias lunares repletos de musica e poesia, percebi tão precocemente, pequeno menino, que essa miúda fresta escancarava à mim tua alma. E logo descobri do que realmente eu era parte... Eu era parte de ti! Um dia numa brincadeira malvada elfos enciumados nos destacaram, mas nossa unidade já estava eternizada nas memorias do tempo. Passei a desejar ler-te cada vez mais e sorver o máximo da doce e mágica companhia das tuas palavras, mesmo sendo elas sussurros escondidos, liberados a mim pelas mãos misericordiosas da fada dos sonhos que por toda uma vida te repetiram, mesmo que de soslaio e de longe. Percebi que as quatro estações habitavam em ti e que enquanto lia-te e respondia eu tinha o céu sob os pés... Então notei lentamente o quanto tudo em minha caixinha poderia mudar pela simples certeza do teu existir e desejei tão forte esse sentir, como as aguas da vida que por mim nunca brotaram... 
Percebi então as novas cores sobre a tela a pintar paisagens novéis, o retorno da musica já quase extinta ao piano que aliviadamente sorria, a desnecessidade de que o fantasma desse corda para que eu dançasse, pois fiz da redoma nuvem de cristal estrelado e do seu solo meu palco e os raios luminosos que de ti partiam em minha direção me fizeram perceber, pequeno príncipe, que o tempo para ti era para sempre e que mesmo não havendo tempo, nem lugar, sempre teríamos funcionando a nosso favor os cronômetros que precisássemos para sermos um. E aquela caixinha passou a ser um planeta que é nosso e nesse planetinha, para ti eu sou princesa, tenho a rosa e possuo cabelos que sempre te lembrarão os campos de trigo e o ouro solar... Percebi, que ao contrario da raposa, talvez não precisemos nos despedir... Tu me ensinaste pequeno menino das minhas visões, com tua alma dócil, e ao mesmo tempo forte, frágil, mas que emana coragem! Adulta, mas repleta de alegria infantil, que não importa o tamanho do planeta ou da caixinha e sim, o conteúdo deles e o quanto somos capazes de transformar a nossas realidades sem termos que nos depreendermos dela ou mesmo nos solidificarmos um ao outro... E como num encantamento pertencente aos portais e círculos, tu sempre estaria aqui, bastava a mim apenas olhar o espelho, reflexo iluminado de mim mesma!
Hoje, o simples ato de ler-te em sonhos, salvou-me, livrou-me de boa parte dos fantasmas e os que restaram já não me assustam tanto, mesmo que volta e meia tentem fazer-me lembrar de suas mórbidas existências... Também suportarei por ti as lagartas, duas ou três, para que em seguida possa contemplar o voou livre e colorido de belas borbo-letras e não temerei os baobás, antes, serenarei sob suas sombras que amenizam o calor em determinados desertos de minha alma. Quem sabe exatamente aí, em seu meio, em terras distantes e virgens, nos seja doado uma clareira!
E você, pequeno príncipe, grande menino, mesmo que não saibas, parte tua mora em parte minha coração, cujas paredes da caixinha não conseguem deter! E aqui, sem barreiras, eremitérios e clausuras, nessas terras minhas e nossas, dentro em mim, somos e sempre seremos atemporais e livres. E tu, és uma velha criança, jovem sábio, que ao provar o sabor de várias frutas brotadas de uma só arvore, não conseguirá conter o retornar e caso queira, dou-te minha melhor maçã. És príncipe, e tens a posse das terras-alma outrora abandonadas, dos jardins-memoria jamais visitados, das fontes de desejos ocultados em aguas que só a ti pertencerá a nascente, das regiões ocultas do intimo dessa ínfima existência, sendo assim, à pequena bailarina, um grande rei.

(Texto escrito em homenagem ao ‘meu’ pequeno príncipe, retratado no livro “O pequeno príncipe” de Saint Exupéry, primeiro livro que eu li, ainda criança, aos 7 anos de idade e que me fez amar tão profundamente a leitura e conseqüentemente a escrita.)
Sunna França
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” (Antoine de Saint-Exupéry)

23 comentários:

Anônimo disse...

Maravilhoso texto.
Amei a ligação da Bailarina com o Pequeno Principe,perfeita sintonia.
Parabénsssssssssssssss.
Um beijo.

Unknown disse...

Ainda acho que toda a criança/adolecente deveriam ler o Pequeno Principe.
É uma obra perfeita para se fazer uma magnifica viagem.
Parabéns

Jeferson Cardoso disse...

Olá Dica! Esta semana estou divulgando uma “nova” postagem. Trata-se de um conto; que na verdade vem a ser uma reedição de meu blog. Sua postagem original ocorreu em 13.02.09; sendo esta a minha terceira postagem no blog. Naquela ocasião este texto não recebeu nenhum comentário. O texto é “O Sr. e o Dr.”. Espero que você, tendo um tempinho, o aprecie.
Um grande abraço, minha gratidão antecipada!

Jefhcardoso do http://jefhcardoso.blogspot.com

Sandra Gonçalves disse...

Que lindo querida...Pura sintonia. Viajei em tuas palavras.
Bjos achocolatados.

Vim te convidar a conhecer meu novo blog.
http://sandra-botelho.blogspot.com/
Te espero lá tá?
Bjos achocolatados

Anônimo disse...

Muito obrigado pela visita amada.
Um beijo grannnnnnnnde.

Unknown disse...

Um texto não é apenas descrição de uma cena ou de um ato. É o movimento, o sabor, o aroma, a cor, a música que habitam dentro do seu autor.
É exatamente esta dimensão que foi dada aqui, reinventando imagens ancestrais do príncipe e da bailarina em sua caixa de música.
Que universos mais estas imagens densas e diáfanas conseguem trazer para dentro de nós?
Enquanto isso, o texto não terminou em seu ponto final: continua o som da caixinha de música e eu me pergunto onde estará o príncipe.

Paulo Tamburro disse...

DICA CARDOSO

DESCULPE FUGIR AO TEMA PROPOSTO.

PORÉM TENHO UM CONVITE. LEIA:

"O COMPORTAMENTO SEXUAL DO POVO BRASILEIRO",

QUE É A CRÔNICA/PESQUISA DO BLOG DE HUMOR:

"HUMOR EM TEXTO", DESTA SEMANA.

SAIBA A VERDADE, COMPROVADA SOCIOLOGICAMENTE, E

TIRE SUAS CONCLUSÕES.

VOCÊ PODERÁ NÃO ACREDITAR.

SÓ CONFERINDO.

UM ABRAÇÃO CARIOCA.

Anônimo disse...

Dica, levei alguns dias para estar aqui novamente. Mas, quer saber, não podia ter sido num melhor dia do que este! Uau, recarreguei a minha bateria... Lindo demais!
Parabéns pela sua escolha!!!
Beijos
Glória

Eduardo Santos disse...

Olá amiga. Excelente este conto do pequeno princípe. Gosto da forma como se exprime, mas ainda mais das poesias. Tive oportunidade de ler algumas, parabéns pelo trabalho. Tudo de bom, logo que possa, voltarei, obrigado.

Bete disse...

A TRISTEZA PERMITIDA (Marta Medeiros)

Se eu disser pra você que hoje acordei triste, que foi difícil sair da cama, mesmo sabendo que o sol estava se exibindo lá fora e o céu convidava para a farra de viver, mesmo sabendo que havia muitas providências a tomar, acordei triste e tive preguiça de cumprir os rituais que faço sem nem prestar atenção no que estou sentindo, como tomar banho, colocar uma roupa, ir pro computador, sair pra compras e reuniões – se eu disser que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi um dia como os outros, que não encontrei energia nem pra sentir culpa pela minha letargia, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive vontade de nada, você vai reagir como?

Você vai dizer “te anima” e me recomendar um antidepressivo, ou vai dizer que tem gente vivendo coisas muito mais graves do que eu (mesmo desconhecendo a razão da minha tristeza), vai dizer pra eu colocar uma roupa leve, ouvir uma música revigorante e voltar a ser aquela que sempre fui, velha de guerra.

Você vai fazer isso porque gosta de mim, mas também porque é mais um que não tolera a tristeza: nem a minha, nem a sua, nem a de ninguém. Tristeza é considerada uma anomalia do humor, uma doença contagiosa, que é melhor eliminar desde o primeiro sintoma. Não sorriu hoje? Medicamento. Sentiu uma vontade de chorar à toa? Gravíssimo, telefone já para o seu psiquiatra.

A verdade é que eu não acordei triste hoje, nem mesmo com uma suave melancolia, está tudo normal. Mas quando fico triste, também está tudo normal. Porque ficar triste é comum, é um sentimento tão legítimo quanto a alegria, é um registro de nossa sensibilidade, que ora gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é estar deprimido.

Depressão é coisa muito séria, contínua e complexa. Estar triste é estar atento a si próprio, é estar desapontado com alguém, com vários ou consigo mesmo, é estar um pouco cansado de certas repetições, é descobrir-se frágil num dia qualquer, sem uma razão aparente – as razões têm essa mania de serem discretas.

“Eu não sei o que meu corpo abriga/ nestas noites quentes de verão/ e não me importa que mil raios partam/ qualquer sentido vago da razão/ eu ando tão down...” Lembra da música? Cazuza ainda dizia, lá no meio dos versos, que pega mal sofrer. Pois é, pega mal. Melhor sair pra balada, melhor forçar um sorriso, melhor dizer que está tudo bem, melhor desamarrar a cara. “Não quero te ver triste assim”, sussurrava Roberto Carlos em meio a outra música. Todos cantam a tristeza, mas poucos a enfrentam de fato. Os esforços não são para compreendê-la, e sim para disfarçá-la, sufocá-la, ela que, humilde, só quer usufruir do seu direito de existir, de assegurar seu espaço nesta sociedade que exalta apenas o oba-oba e a verborragia, e que desconfia de quem está calado demais. Claro que é melhor ser alegre que ser triste (agora é Vinícius), mas melhor mesmo é ninguém privar você de sentir o que for. Em tempo: na maioria das vezes, é a gente mesmo que não se permite estar alguns degraus abaixo da euforia.

Tem dias que não estamos pra samba, pra rock, pra hip-hop, e nem pra isso devemos buscar pílulas mágicas para camuflar nossa introspecção, nem aceitar convites para festas em que nada temos para brindar. Que nos deixem quietos, que quietude é armazenamento de força e sabedoria, daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta, anunciando o fim de mais uma dor – até que venha a próxima, normais que somos.

Helena Castelli disse...

Sempre existirão bailarinas que irão ler o pequeno príncipe...

Com carinho.
Helena

Bete disse...

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir. Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso. E com confiança no que diz.

Carlos Drummond de Andrade

Vampira Dea disse...

Lindo texto

Thiago Nogueira disse...

Eu sempre achei que a poesia pecava por sua subjetividade e a prosa por seu pragmatismo, mas você resolveu esse problema emprestando a sua prosa à poesia e sua poesia à prosa.

Saint Exupery teria ficado orgulhoso de você!

Anônimo disse...

A vida nos reserva surpresas e momentos q se eternizam por isso sei q é eterno o zelo e o amor do príncipe pela sua F.L.O.R.
C.V.T.A.M.

Machado de Carlos disse...

O Príncipe era pequeno, mas o coração era enorme e nos ensinou como contemplar as flores quando estiver ausente. Ensinou-nos a amar, principalmente quando disse: se o encontro fosse as quatro, por que não às três horas não estaria esperando?
Fico muito feliz quando você vem. Minha alma fica enobrecida com suas energias, com a trilha sonora que me envolve ao som de seu piano!

Machado de Carlos disse...

... e o Príncipe


... O príncipe cativou a raposa sombria;
Na partida ela disse com brandura:
— Ah! Vou chorar minha alma pura,
Não queria o teu mal nesta noite fria!...

— Tu quiseste e eu te amei com maestria.
— Mas vais chorar nesta tortura?
— De nada lucrarás nesta ventura -,
Disse o príncipe com olhos que ardiam.

— Lucro, disse a raposa tristemente -,
Ah! Essa separação desditosa!
Não sei se viverei neste tormento!...

... Para lembrar de ti, verei uma rosa,
Contemplarei o trigo, como alento;
... Enfeitarei as tardes tão ditosas.

Machado de Carlos

Publicado no Recanto das Letras em 28/10/2008
Código do texto: T1253305

Bete disse...

Atiramos o passado ao abismo - mas não nos inclinamos para ver se está bem morto."

(William Shakespeare)

Bete disse...

Amiga, fantasmas entendem essa sigla: V.T.N.C?

Bete disse...

A vida nos reserva deceoções e momentos levianos, onde as pessoas brincam com os sentimentos dos outros e somem feito fumaça no deserto, por isso sei que essas pessoas são efêmeras e passageiras. O desprezo e a mágoa de uma uma F.L.O.R pelo sapo.
Ainda bem que que essas pessoas levianas passam, só os melhores ficam. Sejam bem vindos todos os poetas!




V.T.N.C eterno!

Bete disse...

“Esta coisa de gostar de alguém não é para todos e por vezes — em mais casos do que se possa imaginar — existem pessoas que pura e simplesmente não conseguem gostar de ninguém. Esperem lá, não é que não queiram — querem — mas quando gostam — e podem gostar muito — há sempre qualquer coisa que os impede. Ou porque a estrada está cortada para obras de pavimentação. Ou porque sofremos de diabetes e não podemos abusar dos açúcares. Ou porque sim e não falamos mais nisto. Há muita gente que não pode comer crustáceos, verdade? E porquê? Não faço ideia, mas o médico diz que não podemos porque nascemos assim e nós, resignados, ao aproximar-se o empregado de mesa com meio quilo de gambas que faz favor, vamos dizendo: “Nem pensar, leve isso daqui, que me irrita a pele.”

Ora, por vezes o simples facto de gostarmos de alguém pode provocar-nos uma alergia semelhante. E nós, sabendo-o, mandamos para trás quando estávamos mortinhos por ir em frente. Não vamos. E muitas das vezes sabendo deste nosso problema escolhemos para nós aquilo que sabemos que invariavelmente iremos recusar. Daí existirem aquelas pessoas que insistem em afirmar que só se apaixonam pelas pessoas erradas. Mentira. Pensar dessa forma é que é errado, porque o certo é perceber que se nós escolhemos aquela pessoa foi porque já sabíamos que não íamos a lado nenhum e que — aqui entre nós — é até um alívio não dar em nada porque ia ser uma chatice e estava-se mesmo a ver que ia dar nisto. E deu. Do mesmo modo que no final de dez anos de relacionamento, ou cinco, ou três, há o hábito generalizado de dizermos que aquela pessoa com quem nos casámos já não é a mesma pessoa, quando por mais que nos custe, é igualzinha. O que mudou — e o professor Júlio Machado Vaz que se cuide — foram as expectativas que nós criámos em relação a ela. Impressionados?

Pois bem, se me permitem, vou arregaçar as mangas. O que é difícil — dizem — é saber quando gostam de nós e quando afirmam isto, bebo logo dois “dry” Martinis para a tosse. Saber quando gostam de nós? Mas com mil raios, isso é o mais fácil, porque quando se gosta de alguém não há desculpas nem “Ai que amanhã não dá porque tenho muito trabalho”, nem “Ai que hoje era bom mas tenho outra coisa combinada” nem “Ai que não vi a tua chamada não atendida”. Quando se gosta de alguém — mas a sério, que é disto que falamos — não há nada mais importante do que essa outra pessoa. E sendo assim, não há SMS que não se receba porque possivelmente não vimos, porque se calhar estava a passar num sítio sem rede, porque a minha amiga não me deu o recado, porque não percebi que querias estar comigo, porque não recebi as flores que pensava não serem para mim, porque não estava em casa quando tocaste.

Quando se gosta de alguém temos sempre rede, nunca falha a bateria, nunca nada nos impede de nos vermos e nem de nos encontrarmos no meio de uma multidão de gente. Quando se gosta de alguém não respondemos a uma mensagem só no final do dia, não temos acidentes de carro, nem nunca os nossos pais se sentiram mal a ponto de impossibilitar o nosso encontro. Quando se gosta de alguém, ouvimos sempre o telefone, a campainha da porta, lemos sempre a mensagem que nos deixaram no vidro embaciado do carro desse Inverno rigoroso. Quando se gosta de alguém — e estou a escrever para os que gostam — vamos para o local do acidente com a carta amigável, vamos ter com ela ao corredor do hospital ver como estão os pais, chamamos os bombeiros para abrirem a porta, mas nada, nada nos impede de estar juntos, porque nada nem ninguém é mais importante do que nós.“

Fernando Alvim, Jornal Metro (13.10.07)



Encontrei este lindo texto do Alvim num cruzamento “acidental” e só podia fazer o que mais gosto: partilhar cada palavra com todos vós.

Silvana disse...

Minha amada e inesquecível Sandra...eu estou até agora em lágrimas, por ver, ler, sentir tanta beleza, tanta perfeição, tanto amor, tanto viver...em cada traço, em cada linha, em cada palavra, em cada imagem. Vc é simplismente imortal,e que quando Deus te enviou para a terra, Ele disse: VAI E ARRASA...mesmo que passes por privações e dores, o meu amor por ti é mais forte e te acalmará...mesmo que sintas tristezas e solidão, Eu estou contigo, vc é a minha menina, a menina dos meus olhos...DEUS TE ABENÇOE, MINHA ETERNA AMIGA.
Um grande beijo, com muitas saudades, Silvana Vasconcelos (SIL)

Machado de Carlos disse...

Duas Pobres... Almas


- I -

Oh! Tu que vens de longe... cansado!
Entre. Aninha-te no meu carinho;
Nunca tive amor. (Sempre tão sozinha!...)
A vida tolheu-me de ser amada!

- II –

O tempo chuvoso enlameia a estrada;
Ah!... Minha alcova tépida!... Um ninho...
— Imploro: - entre -, até quando o caminho
surge no esplendor da alvorada?!...

... E de manhã, quando a luz poderosa
a estrada doirar – horrível e nua! –
podes partir, oh! Amado vaidoso!

Já não sereis só. Nem irás sozinho...
Ficará a doida saudade tua;
Irá contigo a lembrança minha!...

Machado de Carlos

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