sexta-feira, 26 de março de 2010

Encantada lembrança antiga!


Sinto o cheiro da terra molhada pelo orvalho da manhã, perfume de capim a destituir o cargo dos pequenos frascos importados... A sinfonia da chuva transportou-me ao tempo em que meus pés eram pequenos e descalços, beira de rio, areia que atola:
- Corram que é areia movediça!!!
Risadas e borboletas flutuavam e se misturavam ao ar, colorindo-o. Pequenas mãos, unhas inevitavelmente roídas não evitavam que o barro se acomodasse por entre elas. Pequenos dedos agarravam-se a terra macia, pobre das minhocas e a mais infeliz de todas, robusta, gordinha, sem começo nem fim, ameaçada pelos gritos dos caboclinhos:
- Quer ser filha da terra, tem que comer! E pequenas vozes de todos os tons cantavam descompassadas:
- Prove! Prove! Prove! Provei... – Eca!
- tem que engolir toda!
- Engoli... Eca eca no inicio e depois a surpresa: - Tem gosto de terra!
Pronto, eu agora aos oito anos de idade era filha da terra!
Interessante, tornei-me filha da água aos seis anos, quando engoli piabas vivas, pequenos peixinhos que nadaram por entre a minha garganta, que segundo os caboclinhos me ensinariam a nadar...
- como é?
- Você abre bem a boca com a cabeça para cima, olhando para o céu ( aproveitei a posição para fazer uma rápida oraçãosinha pedindo a Deus que me ajudasse), pega ela pelo rabo e solta bem no meio da garganta e ela nadará por dentro de você, daí você se joga na água, mais tem que ser bem no fundo e ela te fará nadar!
- E se eu não conseguir???
- É por que ela morreu dentro de você... Tem que ficar viva, daí você vai se afogar, nós te tiramos e se quiser ser filha da água tem que fazer tudo outra vez, até conseguir ou morrer! Risos dos caboclinhos danados!!!
E lá se foi, engoli uma, me afoguei, engoli duas, me afoguei, engoli três, quatro, cinco e na sexta eu já estava familiarizada com o fundo do rio, o gosto da água, o mato sobre ele, as pedras e até achava que tinha escutado um “Oi” de um peixe esquisito e já não me importava mais se tivesse que ficar para sempre lá no fundo. Mas o destino havia decidido outra coisa e então nadei axovalhada enquanto ouvia os gritos vindos da margem:
- Filha da água! Filha da água!
Não foram poucos os “rituais” que juntos, eu e os caboclinhos, passamos escondidos dos adultos, cada um ritual tinha sua idade, é claro! E eu tinha que ser filha de uma porção de outras coisas, uma mãe e um pai só não bastava. Tinha que ser filha da mata, conversar e subir em arvores enormes, ser levada de olhos vendados até certa distancia por entre a mata e ser deixada lá para que enfrentasse a caipora e retornasse sozinha, só se via cabeças de meninos escondidos por trás das arvores, mas isso era fácil, a cabra-cega da mata... Difícil era encontrar de cara com uma onça!!! Será que eu fui uma criança suicida e não sabia? (risos) Tinha também que ser filha do vento, cavalgar em um potro bravo, a pelo, em alta velocidade, mas é claro que antes tinha que ter todo um diálogo com ele para que finalmente ele me aceitasse em seu lombo, não era nada agradável os tombos entre um diálogo e outro... Ao menos ele não era como a minhoca e as pobres piabinhas que foram “escolhidas”. Ao contrário, ele teria que escolher a mim, ou não... E me escolheu e por um instante achei que ele criou asas, que eu estava sobre um cavalo alado, voavamos por entre o capinzal.
E após um dia de ritual sempre vinha à recompensa, uma bela guerra de estrume no curral e depois deitávamos todos no capim repleto do sereno da noite, para contarmos estrelas cadentes. Nossa! Era sublime quando uma caia e todos viam ( ou quase todos) ao mesmo tempo. Tínhamos que disputar o seu pedido das formas mais variadas: Quem caçasse uma cobra (nunca conseguimos), quem catasse um sapo (vivo, claro!), essa era mole! Mas a prova do vagalume era a mais incrível. Aquele que recolhesse o maior numero deles (vivos, só pra frisar, só matávamos piabas e minhocas engolidas, mais nada!) era o ganhador do tão desejado pedido. E a prova consistia em, depois de recolhidos os bichinhos num vidro ou caixa, o catador pretendente do pedido deveria ficar imóvel, com os braços abertos, enquanto os vagalumes eram postos um-a-um sobre ele... Era sublime, as maiores arvores de Natal e seus piscas-piscas perdem feio à aquela brilhante emoção. Um dia ganhei um pedido, fiquei tão paralisada diante daquelas luzinhas que piscavam que se reuniram dezenas deles em minha volta e sobre mim, foi tão lindo que acreditei serem pequenas fadas que vieram me conceder o tão sonhado pedido. Tinha que ser um pedido especial, então pedi que aquele momento durasse para sempre, eternamente... E durou! Está perpetuada em minha memória a magía daqueles momentos encantados e a alegria de ter esse privilégio de possuir lembranças de instantes tão preciosos que só na alma dos filhos da natureza habitam.
Voltávamos imundos para casa e ganhávamos tremendas broncas que tornavam-se pequenas comparadas a imensidão dos momentos que vivenciávamos, e decidíamos que valia a pena, e fazíamos tudo outra vez! Cavalgávamos em cavalos alados, perscrutávamos os lugares escondidos do fundo do rio, escalávamos grandes árvores, nadávamos em enormes poças que a chuva fazia, enfrentávamos a caipora nas matas virgens, disputávamos pedidos de estrelas cadentes, tocávamos nas fadinhas vagalumes e conhecíamos o infinito da felicidade...
Saudades!
Sunna França

13 comentários:

Franciéle Romero Machado disse...

Olá!

Achei seu blog muito bom, escreves muito bem! =)
Comecei a acompanhá-la e queria convidá-la a conhecer meu blog, também escrevo poesias:

www.franpoesias.blogspot.com

Bjos e Boa Tarde! :D

Úrsula Avner disse...

Oi Dica,

estou passando rapidamente para uma visita, não tive tempo de ler e apreciar seu texto, mas quero voltar com calma depois. Seu blog é interessante e bonito. Agradeço o carinho de sua visita, comentário e interesse em seguir o " Sempre Poesia " . Obrigada de coração e volte sempre,

Úrsula

Anônimo disse...

Bom dia!!!Vim te agradecer a visita amada.Eu demoro um pouquinho mais eu venho rs.
Que postagem delicíosa,eu ñ sei se descobri a essência mas eu só sei q voltei a ser criança,viajei nas águas,subi em árvores,passiei na terra.Maravilhoso.
Parabéns.
Estou te seguindo amiga,assim sendo eu sigo as suas atualizações.
Um lindo dia.
beijokas.

Sonia Parmigiano disse...

Dica,

Grata por sua visita!!

Lindo demais o seu Blog!Parabéns!

beijos!!

Reggina Moon

Al Reiffer disse...

Oi, o seu blog é lindo e de grande qualidade. Parabés! Abraços!

Anônimo disse...

Dica,
Bom dia! Obrigada pela sua visita e pelo carinho desenhado.
Adorei seu texto, me fez sonhar e voltar a ser criança fasceira que imagina e realiza todas as travessuras.
Seguirei seu caminho também, amei tudo que li.
Beijos em seu coração.

Moisés de Carvalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Moisés de Carvalho disse...

muito interessante esse intercâmbio entre nós, amantes da literatura...!
seu blog tem qualidade...coisa de gente grande...!

grande beijo pra voce!

Sonia Parmigiano disse...

Dica,

Passando para te desejar uma ótima semana e agradecer sua visita!

Beijos,

Reggina Moon

Anônimo disse...

Oi Dica, que prazer viajar no seu espaço. Verdadeiramente, encantada!
Bjos
Glória

Sylvia Araujo disse...

Às vezes fico intrigada: como pode o tão simples ser tão gigante assim?

Beijos, filha da terra, da água, da mata, docoração!

LARISSA MIRANDA disse...

E como é bom recordar, né filha da terra?
Enquanto lia imaginava as cenas que estava descrevendo, parabéns, uma história viva.
Beijos e obrigada pela visita no meu canto!

Landro Oviedo disse...

Belo texto sobre as reminiscências. Bastante dinâmico e fluente, forma um caudal de imagens e de flagrantes que nos remetem à fase mais emblemática das nossas vidas.
Parabéns, Dica, adorei.
Landro

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