domingo, 22 de outubro de 2017

A fogueira


Farei uma fogueira no terreiro da minha alma. Usarei como base os troncos largos de velhos sonhos já acordados, mas que insistem em permanecerem plantados em mim, enraizados em meu existir... Irei impiedosamente devastá-los na ênfase de aliviar essa dor irracional e injusta. Quero vê-los em frágeis cinzas posteriormente assopradas por um vento consumador que as espalhe impedindo-as assim de que renasçam... Construirei minha enorme fogueira à custa de um imutável e imprevisto desmatamento. Desmatarei arvoredos de emoções, o gigante jequitibá das recordações, o caquizeiro das tentações, o roseiral das ilusões... Vasculharei a floresta das lembranças e todas as suas folhas, flores e frutos amarelecidos e empalidecidos pelo abandono. Sobreponho todos os restos, grandes, pequenos, mais restos do que tão fielmente acreditei. Eis que surge a grande fogueira dos sentires, e suas labaredas dançam ao som uivante da dor que devasta a minha memória, formando com a fumaça do esquecimento desenhos apavorados no ar, lembranças desfeitas que ardem nas chamas que em breve apagarão.
O calor de suas brasas me invade e implora por viver e as lágrimas chovem de mim e insistem em apagá-la... Mas seguirei com o queimar, os pensamentos circulam em sua volta e lançam sobre ela sortilégios de palavras com efeito comburente, tratando de intensificar ainda mais o incêndio... Decidi que só por hoje choverei e todo o mais eu queimarei no fogo da transformação que trás consigo uma mutação incessante de energias que desfalecem como bruxas na inquisição... E observo efêmera tudo o que acreditei pertencer a mim sendo consumido pelas chamas impiedosas, transformando-se em restos de papel incinerado, desejos gemem ao queimar devagar... Queimem-se também os sonhos não realizados, pecados não consumados, segredos outrora revelados, promessas não cumpridas, mentiras que foram ditas, redomas que foram construidas. E os meus olhos contemplam naufragados o reflexo que se desfez nesse lume intenso, farol atormentado na escuridão da minha noite inquiridora... E ouço a chama que chama por nomes perdidos na destruição de palavras que na impiedosa fogueira morrerão eternamente, sem direito a ressurreição...
Escolhi sofrer só por hoje...
E por trás da grande fogueira o imprevisto... Avisto uma luz na clareira...
(Escrito em 25 de março de 2010)
Sunna França

7 comentários:

Sonia Parmigiano disse...

Dica,

Belíssimo texto, verdadeiro e forte, etéreo e real!Perfeito!

(...)
Queimem-se também os sonhos não realizados, pecados não consumados, segredos outrora revelados, promessas não cumpridas, mentiras que foram ditas, redomas que foram construidas.(/...)

Parabéns!

Beijos,

Reggina Moon

Cris de Souza disse...

Evoé !
Alegra-me esse encontro, volte quando puder e quizer.

Sylvia Araujo disse...

Vim agradecer seu lindo carinho no meu canto e encontro uma fogueira ardente!
Que ela queime e renove, queime e transforme, queime e faça renascer em nós tudo o que há de inteiro. E vivo. E cheio de luz.

Meubeijopravocê

Machado de Carlos disse...

Gosto de sonhar. Aqui, lentamente me envolvo em suas palavras construídas com idéias profundas. Parabéns pela beleza do texto. Um grande abraço!

Sândrio cândido. disse...

querida se permitires até eu gostaria de fazer uma fogueira como esta...texto profundo, com certeza arrancado das incertezas da alma...
beijos

Anônimo disse...

“... Escolhi sofrer só por hoje...
E por trás da grande fogueira o imprevisto... Avisto uma luz na clareira...
Dica Cardoso.”

“Gosto de sonhar. Aqui, lentamente me envolvo em suas palavras construídas com idéias profundas. Parabéns pela beleza do texto. Um grande abraço!
26 de março de 2010 02:42”

Beijos!...

Carlos

Sandro Cazelato disse...

Palavras.....quando bem elaboradas fazem tudo parecer belo... até nossas dores passadas.

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